Carrossel em espiral

Por Hélia Correia

(texto de apresentação do livro Uma Mentira Mil Vezes Repetida, de Manuel Jorge Marmelo, lido na sessão da Bertrand do Picoas Plaza, em Lisboa)





É a primeira vez na minha vida que apresento um romance. Quanto a livros de prosa, só preparei um texto para celebrar uma nova edição dos Cadernos de Malte Laurids Brigge, então rebaptizados como Anotações. Um envenenamento alimentar impediu-me de comparecer no lançamento, pelo que as minhas palavras foram lidas na muito bela voz da Teresa Lima e acabaram por ter um bom efeito. É no entanto absolutamente desajustado falar de Rilke e de romance ao mesmo tempo. Pois os Cadernos não sabemos o que são - e o romance, infelizmente, ainda sabemos.

Da minha evolução como leitora, resulta que as histórias me aborrecem. Se pode reduzir-se a um enredo, então, lamento, o livro não me interessa. E quanto mais real ela parecer, mais me desgosta. Embora Horácio tenha escrito: «Ficta, voluptatis causa, sint proxima veris.» [Horácio, Ars Poetica 338] (A ficção com objetivo de agradar deve estar perto da verdade), já a receita não se aplica ao nosso tempo. O que aos romanos era precioso é para nós vulgar. Mais não vivemos do que um amontoado de ficções. A ficção vem de «fingere», esse verbo que significava «moldar barro», isto é, afeiçoar uma matéria ao seu modelo, até que fielmente o imite. Dá para ver que é coisa de quem já embruteceu.

Pois a arte sublime, que era a grega, nunca tentou levar alguém ao engano. A compenetração no artifício era o primeiro dos patamares do entendimento estético. E só a partir dele se subia para estádios superiores de comoção. Édipo comovia pela beleza da sua construção e pela sua lição religiosa , não porque o povo ingenuamente acreditasse na verdade do actor – tão estilizado como na nossa ópera – e ainda menos porque se surpreendesse com as voltas do enredo.

Apesar das imensas torções arquitetónicas que intentam complicar as visões simples, a platitude da imitação domina ainda o panorama do romance. Nas apresentações, conta-se a história e elogia-se, en passant, o estilo. Lembro-me de uma cena com Agustina em que a apresentadora do romance contou tão longa e pormenorizadamente o enredo que Agustina a mandou calar, temendo, dizia ela, que os leitores já não comprassem, pois que ela estava a revelar a trama inteira… Agustina Bessa-Luis reage sempre com educação mas não resiste a uma intervenção irónica. Muito bem sabe que os leitores da sua obra não buscam nela apenas um enredo.



O Manuel Jorge Marmelo arriscou muito ao convidar-me para falar do livro; e eu não arrisquei menos ao aceitar sem sequer o ter lido. Sendo admiradora confessa das suas crónicas, que fornecem bom músculo a um escritor, não poderia no entanto estar segura de que não ia ser abocanhada pelo realismo temperado com metáforas que faz a robustez do nosso cânone, conferindo-lhe uma resistência singular.
Eu tinha, dos seus livros anteriores, bases para uma certa confiança vendo como aparecia o contador a mostrar os segredos do ofício com um descaramento camiliano - do bom Camilo porque, hélas, existe um mau, que é o que leva o romanesco a sério.
Ainda assim, confesso, estremeci quando o livro chegou. Movera-me o afecto, como é hábito, e esperava-me, supus, uma aflição. Estava condenada a ler a história, a saturar-me de realidade, a suspirar da sua imensidão. Mandava a amizade e a palavra já dada que eu entrasse. E entrei. Só não sabia que estava a entrar num carro em andamento.



Literalmente: num fogo-de-artifício. Um fogo porque existe neste texto um espantoso processo combustivo, uma espécie de volúpia incendiária que contamina mesmo alguns cenários e que consiste em recolher e misturar num crematório alquímico, toda a espécie de personagens que lhe passem ao alcance: as inventadas e as de carne e osso, que não abrem mão, estas, do real. Fernando Pessoa, por exemplo, que tão bem ficaria num capítulo, resiste à inserção visto que as coordenadas da sua biografia não se ajustam à cronologia da cena. E de artifício porque resplandece no seu espectáculo de ilusão no qual o truque e o segredo são um só.





Dá-se este texto ao luxo de criar uma moldura narrativa ao gosto clássico, dentro da qual, porém, existe nada – que, como diz o tal senhor, é tudo. Um livro inexistente é um conceito operativo muito tentador. Supor-se-ia que contém o infinito e que o escritor nele poderá verter tudo o que lhe passar pela cabeça em puro estado de imaginação ou em requinte de entretenimento. Receio que, com isto, o escritor em questão se limitasse a produzir um disparate.

É necessário um condimento, ao qual chamo sem reticências «o saber», para que a vertigem desse movimento se organize de forma, digamos, borgesiana, chegando esse borgesianismo ao ponto, desrespeitoso, aliás, de Borges poder ser, não só a personagem principal, autora desse livro inexistente, como também motivo de um sistema de vigilância e de controle do género Matrix, o qual persegue o fraudulento protagonista e lhe faz telefonemas intimidatórios.

Esse «saber» que concilia a reflexão sobre os processos narrativos e a observação dos mecanismos do prazer e remorso da mentira na consciência dos ocidentais irradia numa pluralidade de direcções. Como nas mãos de um criminoso inteligente, os planos ousadíssimos derrapam porém acabam por achar o equilíbrio graças a hábeis construções mentais.
Dir-se-á, pois sim, que é uma história comovente, uma história de grandes solidões e da doença da fama que não é patologia de somenos entre nós. Não creio, porém, que seja essa qualidade, a de induzir um êxtase nervoso, que devemos louvar numa obra assim. Falo aqui não apenas do «saber» mas do «saber fazer» - a um tal ponto que não se inibe de mostrar a oficina, oficina mental, a teia, o texto onde alguém menos hábil, com menos mão de escrita, acabaria com certeza por perder-se.
Trata-se, ao mesmo tempo, de uma mise-en-abîme e de um trompe l’oeil; e, como se essas artes não bastassem, espera-nos uma espécie de dança do demónio que não deixa assentar os pés no chão.
Tomei devida nota das passagens – e muitas são - que poderiam ilustrar a extremada perícia do autor. O tema da omnipotência do criador, que já surgira em obras anteriores, inaugura de algum modo todo um elenco de reflexões sobre o «logro» da ficção narrativa que é este livro: “A condição de pequeno deus concede-me o enorme poder de criar e destruir a vida de Oscar Schidinski como muito bem me apetecer, de obrigá-lo a estar onde eu quiser e a presenciar exactamente os acontecimentos que me sejam mais convenientes», declara o narrador quase no início. Também exibe os dispositivos técnicos (como por exemplo descrições muito pormenorizadas) que concorrem para o efeito de verosimilhança, não se inibindo de considerar hipotéticas falhas na coerência do enredo, isso a que chama um «solavanco lógico», pelas quais pode perder-se a credibilidade ficcional.

Curiosamente, a sucessão narrativa vai mantendo um estatuto confessional, ao partilhar continuamente com o leitor os problemas práticos de encaixe e de preenchimento dos vazios, dando-lhe conta quer da competência quer das vias abertas ao fracasso. O herói colmata a falha de uma mentira com outra mentira, adapta até o tipo de mentira ao perfil social do seu ouvinte, ganha, com a repetição do cometimento, um à-vontade que se aproxima da negligência: “ Mas, convenhamos, esta hipótese implicaria que a falsificação da Cidade Conquistada alcançasse algum sucesso e que a destrambelhada teoria de Afonso Cão tivesse algum fundo de verdade, o que ainda me parece mais bizarro, visto que a inventei eu mesmo, tal como a Afonso Cão, à toa e sem nada de factual que a sustente.”

A constante deslocação entre o “real” que é o terreno em que se move o narrador e o “ficcional” que é o romance que ele cria oferece-nos passagens em que vemos, de modo raro e em absoluta transparência, desenrolar-se o processo do labor ficcional. Entre considerar quais os ingredientes necessários a um livro que exiba uma razoável complexidade : “Parece-me, por exemplo, que falta ainda uma guerra a Cidade Conquistada; que o livro de Oscar Schidinski ganhará densidade com a descrição de uma batalha”… até, no mesmo parágrafo, numa linha de continuidade entre a decisão técnica e a produção textual, à descrição empática da personagem Marcel, pouca transição há; e, no entanto, há toda a transição que transforma um projecto num objecto, uma intenção de escrita numa escrita. Estamos, na verdade, perante uma “work in progress” não apenas na matéria do texto mas também no processo da mente.
Julgamos assistir, eu creio mesmo que assistimos, sim, ao misterioso mecanismo da criação. “Houve um encontro. É mesmo fundamental que tenha havido um encontro: duas brasas de tabaco acesas junto ao mármore da fonte e uma conversa sussurrada”. De facto, o tema deste livro é, em primeiro lugar, a composição de um universo literário, o jogo de inteligência, de memória, de influência e de acaso que determina um resultado textual. Só depois é o homem que conta histórias nos autocarros.

Mas o narrador não se exime, porque hoje ninguém pode eximir-se e porque o autor não quer, a certa intromissão da realidade, brutal e sem recursos estilísticos que seriam aqui um abuso obsceno. Pelo meio desta festa da imaginação perpassa, ainda transfigurado pela captura do texto, o pesadelo nazi. Porém o pesadelo que é o nosso, feito de confrontos civilizacionais não assumidos uns, explícitos outros, esse mantém a sua dura linguagem, a gélida crueza da notícia. Falo do capítulo constituído por excertos de artigos de jornais.

Há qualquer coisa de fractal neste romance, pequenos mundos que contêm outros pequenos mundos igualmente configurados. Mas os seus traços não se encontram fixados, são regiões de «areias movediças» ( peço emprestada esta expressão ao narrador) onde se perde facilmente o pé. É um caleidoscópio fascinante onde se cruzam e se perdem personagens, onde todas as possibilidades são apropriáveis ou descartáveis, onde a mentira se preocupa com a lógica e a verdade dispara em direcções inconciliáveis.

Um carrossel disposto numa espiral, diria. Uma substância um pouco assustadora porque os limites são indefinidos e não se sabe o que é capaz de incorporar. Se isto soasse bem, afirmaria: um puro louvor ao dom da criação. Mas não ache que soe. Então, prefiro terminar com um excerto ilustrativo:

“Supõe, por exemplo, que quando alguém visita a casa da senhora Sigfried e, olhando o retrato dela, admira a beleza que tem, não está já admirando realmente a beleza da senhora Sigfried, mas a beleza que ele criou; que a senhora Siegfried não é já a senhora Siegfried, antes a senhora Siegfried tal como ele a recriou e inventou – uma outra senhora Siegfried. E isto por toda a cidade: milhares de pessoas reconstruídas pelo toque de um pintor que deixou de ser um mero artista para se transformar num pequeno deus.”